cumprimento

me enojei comigo
voltando sozinho
de alguma obrigação
dessas que sobreviver nos obriga a ter
caminhando estressado
pelas ruas que já há tanto me acostumei
a caminhar
uma música triste toca em meus fones de ouvido
mas caminho estressado
com as obrigações que sobreviver me obrigam a ter
cruzo meus passos
com essa figura
jovem homem
de pele negra e figura esguia
tronco curvado
nossos olhares se cruzam
por um segundo posso ver seus olhos
um verde bonito e assustado
e logo desvio o olhar
e sigo meus caminhar estressado
me questiono o porquê
não pude dizer sequer um bom-dia
me pergunto o porque
não sinto proximidade aos meus vizinhos
me enojo comigo mesmo
e choro ao entrar pelo portão
da fortaleza que me protege dos meus vizinhos

aquário quântico

me sinto grudado no tudo
nadando no oxigênio
ao lado desses outros peixes
que andam sobre a terra
sou um com tudo
quase uma fotografia
as dimensões são ilusões
as vezes posso ver
não existe cima
baixo
ou lados
é tudo uma grande tela
e eu estou aqui
pintado nela
um quadro realista
ilusão em três dimensões
mais um personagem
da novela de Deus

eu gosto de dias chuvosos, eu gosto quando o mundo chora por mim

chovem as lágrimas que não consigo chorar
meu peito se enche de tranquilidade
já que não mais tenho de segurar minha tristeza
olho pro céu cinza e vejo o infinito
que sempre está lá mesmo que eu não repare
sorrio um sorriso sem riso
triste por natureza
mas cheio de um alívio que há muito não sentia
não me sinto sozinho quando chove
pois sinto que o mundo está comigo
não me sinto sozinho quando chove
pois toda poça em que piso reflete quem eu sou
e no vento frio que bate em meu rosto
sinto um abraço que me esquenta a alma
e no silêncio que domina a noite
escuto o som de um mundo que descansa
e na escuridão da noite
é possível ver a luz da manhã seguinte
que ainda não podemos saber
se será ensolarada
ou se novamente hão de chover
as lágrimas que não consigo chorar

ando pela rua me encontrando em todos que precisam de ajuda

Ontem passei por uma moça, pele escura e enrugada, cabelos embranquecidos, sentada na calçada, roupas velhas e amarrotadas. “Menino”, ela me chamou,”menino”, eu olhei, “menino, você pode me ajudar?” eu parei, claro, e só então reparei na pele escura enrugada e nos cabelos embranquecidos e nas roupas velhas e suas mãos tremiam, seus braços tremiam, seu corpo tremia como se nunca houvesse ficado parada nunca antes. “Menino, você pode me ajudar?” e eu parei e reparei nela e ela disse “Eu preciso de 20 reais, menino”, e tremia, seu corpo tremia, suas mãos tremiam, seu corpo todo tremia, “eu preciso de 20 reais, menino, meu remédio custa 60 e eu só tenho 40, você pode me ajudar, menino?” e olhei pra suas mãos que tremiam e vi algumas notas de 10 reais e olhei seu rosto enrugado e ele não me olhava de volta mas olhava pra frente mas não parecia olhar pra frente seus olhos vidrados como se a alma por detrás deles lutasse ferozmente para não visitar as escuras florestas da imaginação neurótica e seu corpo tremia e suas mãos tremiam, seus braços tremiam, “Menino, você pode me ajudar?” e eu nem sei a última vez que tive 20 reais comigo e eu queria ajudar, pego os únicos dois reais que tenho em minha carteira e pergunto se a ela servem e ela diz que sim e agarra a nota amassa com suas mãos que tremem e diz obrigado com sua face enrugada e seus olhos vidrados em nenhum momento olham pra mim. Sigo meu caminho, uma menina passa por mim na direção contrária e posso ouvir no fundo “menina, menina, você pode me ajudar”, e não olho pra trás pra ver se a menina parou, e sigo meu caminho, olhando pras minhas mãos que tremem e tremiam antes mesmo de passar pela moça, tremem como se nunca tivesse ficado paradas antes.

mal-estar

não há um osso que sequer que seja bom nesse corpo
sou um homem terrível
um péssimo amigo
e péssimo amante
um terrível filho
e terrível irmão
um parente ruim
e um ruim cidadão
sequer um osso nesse meu corpo é bom
queria ser diferente
como as pessoas boas são
ser um companheiro confiável
um irmão que ensina
um filho que escuta
um amigo que pergunta se está tudo bem
um cidadão que se importa
mas não há nenhum osso bom em meu corpo

você só não vê as lágrimas

sorrio
vendo crianças brincarem sem preocupações nas praças
ouvindo casais se declararem nos transportes públicos
sentindo o cheiro da mulher que amo
sorrio
com as palavras doces organizadas em elogios
com os abraços que dizem saudade
com as conversas atrasados com amigos que há muito não vejo
sorrio
quando chove e o mundo se tranquiliza
quando faz sol e todos saem nas ruas
quando a brisa refresca um dia quente
sorrio
quando perguntam como estou
e minto dizendo que estou bem
perguntando de volta, esperando outra mentira
sorrio
ao perceber a finitude de tudo
e a brevíssima duração da vida
enquanto relógios correm ao meu redor
sorrio
ao ver a lua e imaginar as estrelas
e todos os planetas que existem em algum lugar
no infinito da existência

eu sempre me sinto como se estivesse morrendo

pontadas no peito
dormências nos braços
o sangue pulsando pelas minhas veias
tudo em mim parece sugerir a morte

tosses secas
dores de cabeça
os olhos embaçando
câncer, infartos, avcs e doenças

se meu coração acelera penso que vou morrer
se minha respiração aumenta penso que vou morrer
se meus pensamentos se multiplicam
penso que vou morrer

não sei se tenho medo de morrer
ou se estou aterrorizado
ao lembrar que estou
vivendo

As vezes ganhar é uma questão de vontade

Ele se adianta ao marcador, lento demais em corpo e pensamento pra cortar o passe no limite que Marcelinho lançou pra ele. A oportunidade era única; com a matada o primeiro zagueiro ficou pra trás e o segundo vinha correndo da ponta direita pra fechar o meio. “Marca o chute, porra, marca o chute” gritou do gol Lucas, o melhor goleiro do bairro todo, sentindo um arrepio por toda a pele, percebendo o lance que se desenhava na sua frente. O zagueiro fechando o meio era um dos melhores do bairro também, aliás, Raul, pernas longas e rápidas, mente ágil, sabia que Vitinho não ia errar se não tivesse alguém na frente dele. O muleque tava nojento, artilheiro da copinha do bairro que acontece todo sábado no campinho da vila, 5 gols naquele dia, um já naquela final pra empatar o jogo quando os 10 minutos do segundo tempo já acabavam. Vitinho arma o chute, olha pra bola como se olhasse num espelho, sabe perfeitamente o que fazer com ela, onde chutá-la pra que ela morra no canto oposto do gol, Luan não pega essa nem que ele queira muito. Raul chega, ele sempre chega. Todos prendem a respiração. Marcelinho, o zagueiro que ficou pra trás, Rico, o goleiro do time das ruas A e B vendo tudo de longe, a mulecada ao redor do quadra, o coroinha que fica vendendo pipoca ali na esquina, Deus. Ninguém respira, ninguém sabe o que vai acontecer. Só Vitinho. Ele finge o chute, claro, corta Raul que desliza na sua frente, toda a envergadura de suas pernas aos braços esticados tentando encontrar a bola, tocá-la um pouco que fosse pra evitar o gol. Mas a bola passa intacta, Vitinho cara a cara com Luan que tenta abafar mas agora já era. Bola rasteira no canto direito, Luan nem pula, ele sabe que não adiantas pular. É gol. Golaço. “Gol porraaaaaaa!” Marcelinho vem gritando, correndo desde do drible em Raul porque ali ele já sabia que ia ser gol. Ele abraça o amigo, outros vem, Rico, Xande, Orelha, Batuta e Juninho.

É a primeira vez que eles ganham a copinha, mesmo tendo dois dos melhores do bairro. A zaga é lenta, Marcelinho precisa jogar recuado pra conseguir segurar as pontas, Orelha corre pra caralho mas a bola queima no pé dele, Rico é um goleirão, mas não chega a ser o Luan, goleiro que todo mundo ali já viu ganhar a copinha sozinho. Nah, o time é muita mais raça, dedicação, vontade. Vontade não ganha copinha, Marcelinho sempre dizia pro time, puto quando eles perdiam pro time da rua C ou pra playboyzada que vinha do outro lado do bairro participar as vezes. Dessa vez ele gritava de alegria. O time abraça o seu craque, Marcelo bate na cara dele, finalmente, “finalmente porra!”, eles tinham ganhado. Gol de ouro é o momento do craque e Vitinho fez isso valer. O time rival, a temida rua D de Luan, Raul, Pedro Cachaça (que não tava num dia muito bom mas mesmo assim tinha feito o primeiro gol daquela final), Matheus, Tuninho, Pepeu, os mais velhos, o que mais venceram a copinha, balançando as cabeças, brigando entre eles, frustrados por terem perdido pela primeira vez pr’aquele monte de pirralho magrelo. Raul é o único que vem e parabeniza Vitinho, “sempre soube que tu era bola, muleque, mas pega leve com a gente na próxima… porque a gente vai vir amassando”, apertou a mão do artilheiro. Vitinho não falava nada, só sorria, um sorriso que era raro de ver no rosto do menino tímido, baixinho, que driblava como ninguém no bairro mas que costumava sumir nos jogos contra os mais velhos. Os campeões caminharam pra fora do campinho, rindo, Marcelinho contando as assistências, o lençol, a caneta do segundo jogo. Eles se sentam na praça, Luan se aproxima com o prêmio da copinha nas mãos, é o dever do capitão entregar ao time vencedor o que eles ganharam. Qual o prêmio? Três garrafas geladíssimas de dois litros de refrigerante e dois pacotes grandes de batata chips que todos os times derrotados dividiam na vendinha do seu Nestor logo do lado do campinho. A mulecada tomou aquele refrigerante como se fosse o champagne mais caro do mundo, as chips como se fossem mais gostosas do que realmente eram. Bebem, conversando, contam suas glórias, mexem com as meninas que passam pela praça, “você viu esse último jogo, Sandra?” Marcelinho achou que ia impressionar a vizinha que tava ali na praça sentada com as amigas, rindo da cara desses garotos bobos e imundos de suor, de terra.

Vitinho levanta, “vou partir galera, amanhã acordo cedo”, Marcelinho protesta, Rico pergunta porque, Vitinho desconversa, quer tomar um banho descansar, eles eram os campeões até a próxima sexta-feira, tinham uma semana inteira pra se sentirem campeões, os melhores do bairro. Levanta, abraça os companheiros de time, segue primeiro pela rua C, desce a rua B inteira depois da passagem e chega na sua pequena casa, simples mas charmosa. Sua mãe na rua conversando com uma vizinha, “nossa menino, vai tomar um banho você tá imundo!”, ela diz dando um beijo na cabeça do seu único filho. O pai toma uma cerveja na sala, vê o filho entrando, “quem ganhou a copinha, filhão?”, o menino sorri lembrando da conquista, “a gente pai, a gente”. O pai sorri com o sorriso do filho, estende a mão e os dois trocam um aperto de mãos demorado. Vitinho vai até o seu quarto, tira a blusa, pega a toalha em cima da cama, para na frente do armário. Um cartaz enorme, o camisa 10 do seu time de coração com as mãos pro alto, milhares na torcida misturados nas arquibancadas do Maracanã, uma lágrima desse de seus olhos. “Eu disse que eu ia ganhar essa pra gente, eu disse!”, ele enxuga as lágrimas, “a gente não merecia ter perdido aquele jogo.” As lágrimas descem pelo seu rosto, as memórias ainda frescas do vice-campeonato de quarta-feira disputando espaço na sua memórias com as da vitória de hoje.

a solidão é um rascunho

as vezes tão só comigo mesmo que sinto um peso além daquele que sempre carrego comigo me pego arrastando pensamentos pesados como o próprio tempo me sinto empurrando o próprio vento tão só que me sinto enlouquecer tão só que quero gritar forte o suficiente para rasgar pulmões alto o suficiente para estourar meus ouvidos gritar o suficiente para me sentir próximo de algo mas me sinto só tão sozinho que nem demônios posso sentir tão sozinho que nem escuto as vozes na minha cabeça sozinho o suficiente para me sentir isolado de mim mesmo